Poética do Viver

Poética do Viver foi um texto escrito por Carmen Lúcia Bez Batti.

Por aquelas circusntâncias que estamos acostumados a chamar de “alheias a nossa vontade” e só descobertas, como sói acontecer, após o ocorrido, o texto não foi inteiramente publicado no primeiro volume de “Metamorfose da Vida”.

Uma lástima que a todos nos toca e, principalmente, claro, a Carmen. Problemas e situações adversas são parte da vida. O que não faz parte é ter a oportunidade de corrigir os erros e não o fazer. É o que fazemos agora publicando o texto integral.

O Coletivo Metamorfose da Vida reitera o orgulho de ter a Carmen entre suas autoras. Leiam a seguir:

Poética do Viver

O que entrego a seguir é um transbordamento íntimo. É falar da contínua dança, onde a existência é criada e recriada em mim.

O conhecimento que o viver nos traz acontece sem cessar. Autoconhecimento e a expansão de si, também sucede de forma continuada. Soma-se a tudo isso a concretude pela expressão de nós mesmos, ou seja, a expressão de nossa identidade.

Se para uma criança a harmonia existente no seu em torno é fundamental para seu desenvolvimento, para o adulto maduro também o é. As condições do ambiente são determinantes para que a pessoa que avança em idade, se sinta bem. A criação desse ambiente harmonizador vai depender dessa memória, desse registro de estar no mundo, sentindo-se protegida e amada. O continente, ou seja, a sensação de segurança dada e recebida ao longo da vida, e também do cuidado do ambiente interno que pulsa com o externo é que possibilitam a busca do bem-estar.

Que ambiente interno é esse a que me refiro? Que espaço íntimo é esse que pode ser acessado para nos sentirmos plenos conosco mesmos? Como cultivá-lo para que nos sirva, com o passar dos anos, de bálsamo para as inquietudes e inseguranças próprias do envelhecimento?

Os recursos individuais ou coletivos que podemos utilizar para o cultivo deste espaço íntimo, estão sendo ampliados. A noção de corporeidade nos trouxe uma outra percepção de nós mesmos. Com isto muitas técnicas, muitas atividades relacionais e integrativas estão disponíveis. Este diálogo íntimo era antes restrito ao campo religioso. Hoje percebemos aumento das possibilidades para além da fé e das religiões.

Mas podemos nós, nos vermos, com direito a vida, com direito a um lugar no mundo, com direito a nos sentirmos plenos e encantados com a existência em si?

Um mergulho para dentro de si se faz necessário. Acessar com sinceridade o que sentimos, do que necessitamos, e como funcionalmente está nosso organismo (respiração, fome, sede, alimentação, evacuação, higiene, sono), nossa disposição, nossos pensamentos, nossas relações sociais, é de crucial importância. Uma auto- observação cotidiana pode abrir as portas da percepção e aflorar nossa sensibilidade.

Inspiro-me nos equinócios, que nos trazem o equilíbrio da luz e do escuro, nos mostrando de igual tamanho o dia e a noite, e a maravilha que existe naturalmente e no replicar em nós os mesmos processos que acontecem na natureza.

Existe em nós humanos uma disposição íntima, salutar, de autopreservação, que nos leva a investir permanentemente no cuidado do “humor endógeno”. É sutil imaginarmos que nossas células, nossos órgãos, todos os sistemas que nos compõem, possam estar

numa relação “sorridente”, num favorecimento e cooperação que nos faz acontecer vivos e capazes de imenso prazer.

O processo do autoconhecimento, o desenvolvimento pessoal, e a descoberta de um jeito próprio de caminhar na vida, acontecem em profundidade quando partilhados e intensificados com a presença de outros seres humanos. Muito se pode fazer em estado de solitude, mas saberemos muito mais de nós mesmos na relação com o outro e com tudo a nossa volta.

Consciência de um caminho próprio de transcendência é uma possibilidade que nos é presenteada pela vida. O tom de nosso existir pode ser pautado pela beleza, pela ternura, pela compaixão, e só depende de nós este protagonismo.

O chileno Rolando Toro Araneda, criador do Sistema Biodanza, já com mais de 80 anos, desenvolveu um estudo, uma teoria, sobre o Inconsciente Numinoso. Trata-se de um potencial inerente a todos nós, de termos a capacidade de sentir e viver o

“maravilhoso” interno que pulsa com o “maravilhoso” externo abrindo-nos à possibilidade de transformar nossa percepção da temporalidade existencial.

Ele fala a respeito de quatro potenciais do Inconsciente Numinoso:

Amor: “É o ápice da grandeza e da benção absoluta”. É comunhão, ternura e empatia.

Íntase: “Sentir a pureza e a força de nossa própria identidade. Percepção de si mesmo como criatura cósmica”.

Coragem: “Capacidade de desafiar nossa própria sombra”.

Iluminação: “Uma iluminação perceptiva amorosa essencial, que se vincula com a luz do outro e que permite vê-lo”.

Segundo Toro, a grandeza de Ser, enquanto potencial humano, aparece na capacidade de amar, na coragem de vencer o medo, na consciência de sermos criaturas cósmicas e na percepção da própria luz.

É possível buscar um equilíbrio das forças que nos movem. A dança que cotidianamente vivemos entre o controle, observação, atenção e a entrega gera outra pulsação, que preenche o lapso dentro/fora, interno/externo onde a calma e a fluidez são mestras.

Podemos sim criar este espaço íntimo de serenidade que é dinâmico e mutante, favorecendo a que vivamos o inusitado que a vida nos apresenta.

Captar o instante é algo singelo, simples aparentemente, carregado de pureza e beleza. Assim pode ser a captação do outro ao percebermos sua luz e sua grandeza de ser.

Dar a atenção devida a cada movimento, a cada gesto é a benção para se alcançar transcendência no cotidiano.

Verso de Rainer Maria Rilke:

“O cotidiano fala em voz baixa com o eterno”

CARMEN LUCIA BEZ BATTI – 71 anos

Diretora da Escola Gaúcha de Biodanza Sistema Rolando Toro e Membro do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Escolas de Biodanza. Nutricionista

Bibliografia:

Araneda, Rolando Toro – El Principio Biocéntrico – Nuevo paradigma para las Ciencias Humanas. La Vida como Matriz Cultural.

Editorial Cuarto Proprio, 2014 – Chile